Associação ACEGIS

Comunicado ACEGIS – Acórdão do Tribunal da Relação do Porto 

 

Legitimada pelo dogma religioso, pela ideologia patriarcal, por normas de conduta, fruto de estereótipos culturais e sociais, o crime de violência doméstica ainda tem lugar no último sítio onde seria expectável: nos tribunais e em decisões judiciais.

A Associação ACEGIS entende que é necessário garantir que em todos os atos e procedimentos legais, e respectivas decisões judiciais, a cultura, a religião, os costumes, ou a pretensa “honra” não devem servir de justificação para atos ou crime de violência doméstica.

 

Cada vez que a justiça falha, estamos a validar uma série de preconceitos e estereótipos de géneros. Cada vez que a justiça falha, estamos a reconhecer, a aceitar, a desculpabilizar, a normalização da violência contra as mulheres e os estereótipos de género.


Comunicado da Associação ACEGIS sobre o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto 

 

  • A desculpabilização e normalização do crime de violência doméstica

 

A Associação ACEGIS considera que a fundamentação usada no acórdão da Relação do Porto, de 11 de outubro de 2017, não só legitima o crime de violência doméstica pelo dogma religioso, estereótipos cultuais e sociais, bem como existe uma desculpabilização e até normalização do crime de violência doméstica, atendendo ao facto de a vítima não ter desempenhado o papel conjugal ou normas de comportamento definidas como socialmente aceitáveis.

Isto abrange especialmente as alegações segundo as quais a vítima teria transgredido regras ou hábitos culturais, religiosos, sociais ou tradicionais de conduta apropriada(artigo 42.º da Convenção de Istambul):

 

“pretende-se, apenas, acentuar que o adultério da mulher é uma conduta que a sociedade sempre condenou e condena fortemente (e são as mulheres honestas as primeiras a estigmatizar as adúlteras) e por isso vê com alguma compreensão a violência exercida pelo homem traído, vexado e humilhado pela mulher.”

“O adultério da mulher é um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem.”

Sociedades existem em que a mulher adúltera é alvo de lapidação até à morte.”

 

As mulheres vítimas de violência doméstica necessitam que a aplicação da lei se encontre desprovida de preconceitos e estereótipos de género ou de normas de conduta assentes numa visão patriarcal e de dominação simbólica masculina que tem servido para legitimar a prática da violência doméstica.

 

Acresce que da leitura do acórdão, verificamos que estamos presente um discurso judicial que reproduz estereótipos de género e normas de conduta justificadas pelo dogma religioso:

“Na Bíblia, podemos ler que a mulher adúltera deve ser punida com a morte.” 

 

Em pelo século XXI, não aceitamos que um tribunal em Portugal faça referência, por um lado, à pena ou “lapidação” até à morte para casos de adultério, e por outro, ao Código Penal de 1886 que condenava ao desterro por seis meses o femicídio.

Equacionar agressões e crimes “em defesa da honra” é estar a perpetuar a violência contra as mulheres e a tolerar o homicídio conjugal.

“Ainda não foi há muito tempo que a lei penal (Código Penal de 1886, artigo 372º) punia com uma pena pouco mais que simbólica o homem que, achando sua mulher em adultério, nesse acto a matasse.”

Face ao exposto, a Associação ACEGIS entende que é necessário garantir que em todos os atos e procedimentos legais, e respectivas decisões judiciais, a cultura, a religião, os costumes, ou a pretensa “honra” não devem servir de justificação para atos ou crime de violência doméstica.

Entendemos, pois, que a noção de adultério ou normas de comportamento definidas como aceitáveis nas relações de intimidade, não podem de forma alguma justificar, legitimar ou desculpabilizar o crime de violência doméstica.

E muito menos, pode a vítima ser culpabilizada e encarada como a transgressora face aos papéis e normas de conduta que lhes estão socialmente atribuídas e que impede a afirmação dos seus direitos.

  • Violência doméstica: A necessidade de quebrar o ciclo da violência

 

Segundo os dados disponíveis é inquestionável que a violência doméstica se encontra, nos últimos anos, como um dos crimes mais participado às forças de segurança.

Assim, e apesar dos progressos legislativos, as mulheres continuam a enfrentar obstáculos diversos no exercício dos seus direitos fruto de estereótipos sociais e culturais, que ainda persistem no discurso judicial e que acabam por desculpar e desresponsabilizar de forma indireta os agressores, reflectindo-se na atenuação ou diminuição das penas. 

 

A violência doméstica encontra-se entre as tipologias criminais que mais frequentemente é participado às forças de segurança.  

De acordo com o último Relatório de Segurança Interna, do Ministério da Administração Interna (2016), foram efetuadas 26 815 participações de violência doméstica às autoridades policiais portuguesas. Correspondendo, em média, a 2235 participações por mês, 73 por dia e 3 por hora.

As ocorrências participadas no distrito de Lisboa representam mais de um quinto do total nacional (22%), seguindo-se o distrito do Porto com (18%). Estes dois distritos correspondem a 40% do volume nacional de participações.

 

  • Mais de 450 mulheres assassinadas nos últimos 12 anos em Portugal

 

Nos últimos 12 anos (de 2004 a 2016), e tendo por referência os dados do Observatório das Mulheres Assassinadas (OMA) da UMAR, 454 mulheres foram assassinadas em Portugal.

526 sofreram uma tentativa de homicídio, a grande maioria por parte de homens com quem tinham uma realçam de intimidade.

 

Em 83% dos casos, a vítima mantinha ou tinha mantido uma relação de intimidade com o agressor. No último ano, em média, duas mulheres assassinadas por mês.

Em 2016, 22 mulheres foram assassinada e 31 mulheres foram vítimas de tentativa de femicídio.

 

De 1 de janeiro a 20 de novembro de 2016, o OMA contabilizou um total de 22 femicídios e mais 23 tentativas de homicídio. Em média, foram verificados dois homicídios por mês, sendo que 45% das vítimas (10) tinham mais de 65 anos, 23% (cinco) entre os 36 e 50 anos e 14% (três) entre os 24 e os 35 anos.

Em 64% dos casos, a vítima tinha uma relação de intimidade com o agressor, e a maioria dos crimes – 86%- ocorreu em casa.

 

Cada vez que a justiça falha,
estamos a validar uma série de preconceitos e estereótipos de género.
estamos a reconhecer, a aceitar, a desculpabilizar, a normalização da violência contra as mulheres e os estereótipos de género.
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Não podemos ficar indiferentes ao teor de decisões judiciais que têm o efeito perverso na descrença do sistema judicial e das leis que devem proteger as mulheres vítimas de violência doméstica.

 

Cada vez que a justiça falha, estamos a validar uma série de preconceitos e estereótipos de género. Cada vez que a justiça falha, estamos a reconhecer, a aceitar, a desculpabilizar, a normalização da violência contra as mulheres e os estereótipos de género.

 

A única forma de reduzir drasticamente os números da violência contra as mulheres é através da denúncia e na crença no sistema judicial.

 

A extrema gravidade das afirmações e do conteúdo do acórdão do Tribunal da Relação do Porto não pode deixar ninguém indiferente. O respeito pelas vítimas de violência doméstica e a sua proteção é um sinal de civilização e de uma cultura de direitos humanos.

As afirmações aqui referidas significam, portanto, um retrocesso civilizacional e um atentado aos direitos humanos das mulheres.

 

Nesse sentido, a Associação ACEGIS junta-se à UMAR –União de Mulheres Alternativa e Resposta e apela a todos os cidadãos e cidadãs a manifestar publicamente a mais profunda indignação face ao conteúdo do acórdão, e a estar presente na concentração de protesto na próxima 6ª feira, dia 27, pelas 18h na Praça da Figueira, em Lisboa.

 

 

Lisboa, 24 de outubro de 2017

Susana Pereira

Fundadora da Associação ACEGIS
A Associação ACEGIS reconhece-se enquanto entidade de referência nas áreas estratégicas da cidadania, inclusão, igualdade de género, empreendedorismo e inovação social.

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